Tuesday, March 19, 2013

além do que se vê

De um dia para o outro o clima deu uma reviravolta; amanhecera com um vento suavemente frio, que fez com que eu tirasse um par de calças e um moletom do armário. Lá fora estava tudo um pouco cinza, o céu estava coberto por nuvens que carregavam uma chuva que iria esperar pra cair. Ao chegar na escola de música, sentei e fiquei jogando conversa fora com a secretária; coisas comuns, mesmo, mas gosto dessas conversas com quem não vejo todos os dias. É como conversa de elevador, se está chovendo, se está quente, como o trânsito está uma lástima... Mas há também aqueles assuntos inusitados, aqueles que não nos vêm à mente todas as horas e com todo mundo, como trabalhos no período de férias, a relação das pessoas com o frio ou o quão eclético somos quando se trata de música.  É divertido a troca de idéias e pontos de vista em uma conversa descontraída, aprendo muito sobre as pessoas nesses momentos. Então chegara às duas da tarde o relógio, subi as escadas com um copo de água nas mãos e a mente livre de qualquer pensamento. Com um violão nas mãos, o mundo desaparece ao meu redor. Dentro daquelas quatro paredes durante aqueles quarenta e cinco minutos é como se aquele fosse tudo ao que se resumisse o meu universo. Aquele é o meu tempo, aquele é o meu lugar, aquela a minha paixão, longe de quaisquer outras distrações estrangeiras. Sai da garganta a voz em tom onírico, à vontade com a situação; sai do violão uma harmonia nova e bela, conjuntos de notas as quais as mãos descobrem a cada arpejo no tocar das cordas. É bonito mergulhar nessa transe, é uma pena que acaba. Ao sair dali, tomei meu caminho, o qual eu, normalmente, percorro andando bastante rápido, com uma pressa demasiadamente chata. Hoje, porém, não tive pressa alguma, caminhei de acordo com a minha vontade e com o clima dessa dia de fim de verão. Entrei em um beco, ao qual por muito tempo passava despercebido por mim, até que encontrei um motivo para notá-lo e colocá-lo no meu mapa, o que deve fazer quase um ano e meio. Chegando ao fim do beco, entrei na porta à esquerda e subi as escadas, e ali estava ela, sentada atrás da mesa, com sua máquina de costura ligada e os óculos apoiando-se na ponta do nariz, quando olhara para cima e excalamara "menina, não te vejo desde o ano passado, vem aqui me dar um abraço!". Helena, com esse jeito extrovertido, carrega dentro de si uma sinceridade hostil - não por maldade, de forma alguma - e seu sorriso cansado se abre independentemente de qualquer coisa. Eu encontrara por acaso essa senhora, por indicação de uma grande amiga quando questionei se ela não sabia de nenhuma costureira boa, ela só não me dissera que tão boa era ela no trabalho como de coração. E, como de costume, as visitas à Helena não duram menos de meia hora, sendo inadmissível a ela não papear e rir um pouco da vida. Ao fim disso, segui meu caminho novamente e decidi ir tomar um café em um lugarzinho novo que abrira faz pouquíssimo tempo ali perto. Entrei, fiz meu pedido e sentei. Logo entrara um conhecido lá e conversamos, eu da minha mesa e ele da dele, um pouco sobre a viagem que ele fizera nas férias de verão, sobre as vezes que ele fora o chef de cozinha na macarronada para arrecadar fundos ao grupo de dança ao qual eu fazia parte e de algumas outras pequenas coisas, incluindo assuntos de conversa de elevador. Cessado o assunto, tornei a ler e acabei me perdendo em meu livro. Quando vi, o relógio já apontava a hora de ir. Pedi então um chá para levar e fui embora. O amargo do mate com o azedume do limão reagiram em um sabor único - se fecho os olhos, ainda consigo sentir o cheiro da erva, as raspas de limão e do frescor que invadia a cidade. Continuei, passo a passo, a seguir meu caminho usual das terças-feiras.
Sabe, eu que detesto a banalidade que envolve a rotina maçante, deixei, deliberadamente, que eu apreciasse um pouco mais dela nesse dia que agora se inclina ao fim. Pude ver que nem tudo é tão igual assim. Os pormenores, os pequenos detalhes desse dia, tornaram essa terça-feira um pouco mais bonita do que as outras. Talvez, se eu prestasse mais atenção aos dias, sem deixá-los passar despercebidamente voando perante meus olhos, todos os meus dias poderiam ter um tom tão agradável como o dessa terça-feira. (Est-ce que ça?) Talvez, pois, todos os meus dias poderiam ter cheiro de chá com limão, eu poderia ter conversas de elevador com estranhos de vez em quando e minhas pernas poderiam dar às caminhadas um ritmo mais calmo; quem sabe... De qualquer forma, c'est une belle vie.

"Moça, olha só o que eu te escrevi, é preciso força pra sonhar e perceber que a estrada vai além do que se vê.."
Referência à música que tocou, no modo aleatório, depois de escrito esse pequeno texto e que tão simplesmente coube a tal e, assim, o entitulou.

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