Saturday, September 25, 2010

Estado De Graça

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Também é bom que não venha tantas vezes quanto eu queria. Porque eu poderia habituar-me à felicidade - esqueci de dizer que em estado de graça se é muito feliz. Habituar-se à felicidade seria um perigo. Ficaríamos mais egoístas, porque as pessoas felizes o são, menos sensíveis à dor humana, não sentiríamos a necessidade de procurar ajudar os que precisam - tudo por termos na graça a compensação e o resumo da vida.
Não, mesmo se dependesse de mim, eu não queria ter com muita frequência o estado de graça. Seria como cair num vício, eu me tornaria contemplativa como os fumadores de ópio. E se aparecesse mais a miúdo, tenho certeza de que eu abusaria: passaria a querer viver permanentemente em graça. E isso representaria uma fuga imperdoável ao destino simplesmente humano, que é feito de luta e sofrimento e perplexidade e alegria menores.
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Sai-se do estado de graça com o rosto liso, olhos abertos e pensativos e, embora não se tenha sorriso, é como se o corpo todo viesse de um sorriso suave. E sai-se melhor criatura do que se entrou. Experimentou-se alguma coisa que parece redimir a condição humana, embora ao mesmo tempo fiquem acentuado os estreitos limites dessa condição. E exatamente porque depois da graça a condição humana se revela na sua pobreza implorante, aprende-se a amar mais, a perdoar mais, a esperar mais. Passa-se a ter uma espécie de cofiança no sofrimento e em seus caminhos tantas vezes intoleráveis.
Há dias que são tão áridos e desértocos que eu daria anos de minha vida em troca de uns minutos de graça.

Clarice Lispector, (trechos do trecho de uma crônica).

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